De certas situações, tenho mais lembranças do que esquecimento.
Muitas lembranças.
Algumas, por certo, são indeléveis.
As lembranças ficam gravadas pela força do impacto em sua pessoa: moral, físico, econômico, sentimental ou intelectual.
Uma das melhores fases da minha existência foi a minha adolescência, principalmente porque a vivi na década de sessenta, que modificou o comportamento de todo jovem para sempre.
Após a inferência de James Dean e Elvis Presley, do rock e do twist, a efervescência da rebeldia do jovem evoluía com a beatlemania, com a mini-saia criada pela Mary Quant e com o movimento hippie.
Chegaram os festivais.
E com eles, inovações reais ou supostas.
Quem não se lembra do Toni Tornado com “BR-3”, ou do Walter Franco com “Cabeça”. Vaias, violão quebrado (Sérgio Ricardo), abandono de palco foram algumas nuances dos certames.
Aí, Miracema entra em cena.
Em 1969, eu trabalhava na Tipografia Souza (do Sr. Neguinho). Lá, eu confeccionei o livreto do I Festival Estudantil da Música Popular Brasileira de Miracema (formato 32, papel AP-16, capa em cartão AG-24 verde). Bem simples. Ainda sem logotipo. Pode-se ver uma de suas páginas em postagem do meu primo, Gilson, no blog “O Vagalume”.
O festival teve como vencedor o poeta e compositor miracemense Carlos Gualter com a música “Cores Vivas”, defendida pela magnífica intérprete e crooner Zilda Santos (também miracemense).
Em 1970, já de volta à Gráfica Normalista (onde iniciei minha carreira de tipógrafo), compus e imprimi o livreto do II Festival... (formato 18, papel AP-16, capa em papel cuchê (luxo). Já trazia o logotipo da viola com a sigla (os traços da ideação constam dos registros do meu primo, Gilson, cujas imagens foram publicadas no blog “O Vagalume”; a arte final parece-me ter sido perpetrada pelo Dauto Schueler).
Em seu intróito, trazia um pequeno texto escrito pela Professora Oraide Alves da Silva, que iniciava-se assim: “Como sói acontecer nos lídimos anseios que a lira de Euterpe à musa inspirou, Miracema fará realizar...”. A seguir, fazia o convite para o festival. (Que pena que eu não sei se alguém preservou esse documento).
A confecção desse livreto me marcou muito.
A diretoria do Grêmio Estudantil Alberto de Oliveira, vinculado ao Colégio Nossa Senhora das Graças (hoje cenecista), autorizou o Josemar Poly alterar a letra de uma sua música, a fim de evitar cacofonia – de “Espero da vida nada” para “Espero nada da vida”. No dia seguinte, o Carlinhos Gualter nos solicita (também para evitar cacofonia) alterar o refrão de uma de suas duas músicas inscritas e classificadas para as finais: de “Como ela é bela – Como ela é rosa – Coitada, é passageira – Pois ela é rosa” para “Ela é bela – Ela é rosa – Coitada, é passageira – Pois ela é rosa”. Não titubeei e alterei, por coerência. Estava já a imprimir essa página (mais ou menos, seiscentas e poucas, de um total de mil) quando o balcão é invadido pelos organizadores a questionar o nosso procedimento – não poderíamos ter alterado sem a autorização de um de seus representantes, sob a alegação de que as letras já tinham passado pela censura (naquele tempo, imperava o militarismo). De um dia para outro a “Censura” mudou?
Discussões, polêmicas e interpretações alternadas. Veio o meu tio Gerson (pai do Gilson – tinha uma loja contígua à gráfica), o professor de português (Sr. Ulisses), o diretor do ginásio, o padre com a bíblia, o banqueiro com um milhão (Chico? (de Geny); só não veio o juiz de direito porque não morava ali – nem o gerente do Banco do Brasil porque ainda não tinha agência lá.
Eu, com meus dezoito anos, pressionado pela turba enfurecida de alguns verdadeiros e outros supostos intelectuais, capitulei; joguei fora os papéis já impressos, dizendo ao gerente para descontar do meu salário, enquanto vociferava: “Vocês vão fazer “Apostasia” ganhar o festival - hipocrisia não faz parte do meu dicionário”. Perplexos, os meus interlocutores (?) arregalavam os olhos a me interrogar. Não mais os olhei e nem mais os ouvi.
Chega o capítulo final.
A preferência do público recaía na outra música do “Cumpade Carlim Gualter” – “Casa de Poeta” – defendida pelo brilhante Eraldo Leite (no dia seguinte, domingo, comentava com o Flávio Cavalcanti sobre a qualidade do festival, encantado, assim como alguns dos jurados que lá estiveram a julgar).
Por dois motivos:
Primeiro: A música “Casa de Poeta” foi inspirada em fatos reais vividos pelo seu autor. Ele gostava de uma mulata... que acabou sendo arrebatada pelo poderio econômico de um comerciante local (eu a conheci já numa fase em que ela não estava tão airosa). Mas ele... ele passou a viver nas madrugadas da cidade, a compor em versos as suas agruras. A canção começava assim: “Casa de poeta – Violão na sala – Flores na jarra – Cantor, pastor da madrugada”. E terminava assim; “Foge da faustosa gaiola – Do olhar que te prendeu – Liberta-te, pássaro cativo”. Ao final da apresentação da música, ele desvenda o mistério do que parecia ser uma caixa de pandora, encoberta por um pano verde, dela retirando uma pomba branca e a solta para revoar o grande recinto do Cine XV. Todo o público, de pé, aplaudia. Um dos momentos mais lindos e sublimes que vivenciei.
Segundo: A música do Raul foi mal interpretada. Justifica-se tal julgamento pela época em que foi criada. Era uma composição futurista, tida como “de laboratório”. Rebuscada. Talvez influenciada pelo movimento hippie. Trazia um título que muita gente até hoje não sabe o que significa. O que mais “pegou”, porém, foi a representação cênica que imprimiram na execução da apresentação: palco cheio, luzes apagadas; a fumaça do incenso (daqueles de igrejas) fantasmava as imagens do projetor de slides, que alternava fotos de “madona” e de “mulheres nuas”. Talvez o público não estivesse preparado para tal espetáculo. Talvez tenha sido considerado afronta à religiosidade ou heresia.
Conclusão: Com o resultado dos jurados, para muitos, inusitado, com “Apostasia” em 1º lugar e “Casa de Poeta” em 2º, as vaias aconteceram. Poder-se-ia dizer que foram injustificadas, mas foram inevitáveis.
A capacidade técnica e intelectual do Raul o levou à TV Globo, onde pudemos ver seu nome nos créditos de vários programas.
Finalizando, ao tempo em que desejo ao Raul Travassos do Carmo sorte e que continue com seu sucesso, tenho a dizer que resolvi rememorar fatos da época motivado por um comentário por ele postado no blog “O Vagalume”, da miracemense Angeline. A meu ver, fazia-se necessário prestar mais informações para correção ou esclarecimentos acerca de três pontos:
1. O festival por ele vencido foi efetivamente o segundo;
2. As vaias realmente ocorreram, justificadas ou não, pelos motivos acima expostos; e
3. Não sei se por erro de digitação ou não, ele cita que a “Pinga” partiu sem pedir licença. Quero crer que ele teve a intenção de fazer referência à “Pingo – Eleonora de Martino Salim (filha do nosso venerável Joffre Geraldo Salim), que há alguns anos foi a segunda pessoa mais poderosa do Brasil na mídia, ao movimentar os milhões da PETROBRÁS na área publicitária (vide anais d’O GLOBO).
Os fatos são evidentes e imutáveis. Não fazem parte da minha verdade e sim da verdade. Com respeito a todos os personagens, eu os divulgo.